sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Cataguases, a cidade onde nasci e aprendi a amar arte



(...)1877. Uma cidade igual às outras, uma entre tantas outras pequenas cidades do interior de Minas. Cem anos depois, o rio continua a passar, agora sob duas pontes. Há outras tantas praças e igrejas. As casas já se erguem fora do entorno do quadrilátero central e há um esboço de verticalização, prédios e mais prédios. É uma cidade de porte médio, habitada por cerca de 70 mil pessoas, a que hoje ali se encontra, às margens do Rio Pomba.
O Rio (de Janeiro) está a menos de quatro horas de automóvel. Belo Horizonte, um pouco mais: quatro horas e meia, se tanto. Juiz de Fora, pertinho: menos de duas horas.(...)
Desde os anos 1940, a cidade passou a “respirar modernismo” por todas as suas ruas. Prédios, esculturas, monumentos, tudo, quase tudo hoje tombado nessa cidade que é um monumento vivo do modernismo no interior do país.
O Colégio? Obra de Oscar Niemeyer (1947), com painel de pastilhas do modernista Paulo Werneck e mobiliário do português Joaquim Tenreiro, que praticamente iniciou em Cataguases sua carreira de designer de móveis. O Colégio Cataguases, famoso por seu internato nos anos 50, onde estudaram Chico Buarque, Dori Caymmi, Pedro de Moraes (...)
Ronaldo Werneck, 2005

Também não dá pra esquecer o painel de Djanira na Igreja Santa Rita, o de Portinari, As Fiandeiras... um dos primeiros cinemas do Brasil, o Cine-Theatro Recreio, inaugurado em 1896, onde Humberto Mauro exibiu seus filmes e de onde Glauber Rocha saiu para fazer filmes no Rio de Janeiro... com uma câmera na mão, muitas idéias na cabeça. Muitas memórias...as fotografias de Pedro Comello, um dos melhores fotógrafos modernistas, cuja filha Eva Nil revelada por Humberto Mauro, fotografou em estúdio o casamento da minha mãe, em 1962 ... incrível as variações de cinza daquelas imagens! O Hotel Cataguases e os Jardins de Burle Marx e a escultura de Jan Zach, as Fábrica de Tecidos Matarazzo e as janelas da construção neoclássica Irmãos Peixoto, hoje Instituto Chica e todo o imaginário da Revista Verde e do Manifesto Verde. Aliás Verde Cataguases, o mesmo citado por Mário e Oswald de Andrade no poema assinado Marioswald:
Tarsila do Amaral não pinta mais
Com verde Paris
Pinta com verde
Cataguases

numa demonstração de admiração ao grupo modernista de Cataguases apoiado pelo grupo Antropofagia, de 1922. Tudo isso no imaginário coletivo e individual de seus habitantes.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Flanando... perambulando, como dizia o poeta João do Rio.

Passar o mouse nas fotografias para identificar o título de cada uma:
João do Rio, poeta, jornalista, cronista, tradutor de Oscar Wilde no Brasil, teatrólogo.

Entrevista feita por João do Rio à Olavo Bilac em dia incerto de junho de 1907
A casa do poeta é de uma elegância delicada e sóbria. Ao entrar no jardim, que é como um país de aromas, cheio de rosas e jasmins, ouvindo ao longe o vago anseio do oceano, eu levava n'alma um certo temor. Eram oito horas da manhã, apenas oito horas. A rua parecia acordar naquele instante, os transeuntes passavam com o ar de quem ainda tem sono, e o próprio sol, muito frio e formoso, parecia bocejar no lento adelgaçar das névoas. — Só muito cedo encontrar-me-ás em casa, dissera ele, e eu mesmo sabia que o cantor do Caçador de Esmeraldas acorda às cinco da madrugada, escreve até as dez, sai e não recolhe senão depois da meia-noite, porque o entristece ficar num gabinete sem outra alma, à luz dos bicos de gás. Quando, porém, ia tocar o timbre de um velho bronze, o meu receio desapareceu. Estavam as portas da sala abertas e eu via Bilac curvado sobre a mesa a escrever.(...)
João — (...)O poeta faz-me sentar.
Bilac — Oito horas já? Há não sei quantas escrevo eu.
João — Versos?
Bilac — Oh! Não, meu amigo, nem versos, nem crônicas — livros para crianças, apenas isso que é tudo. Se fosse possível, eu me centuplicaria para difundir a instrução, para convencer os governos da necessidade de criar escolas, para demonstrar aos que sabem ler que o mal do Brasil é antes de tudo o mal de ser analfabeto. Talvez sejam idéias de quem começa a envelhecer, mas eu consagro todo o meu entusiasmo o entusiasmo —que é a vida — a este sonho irrealizável.(...)
(...)Tenho que há na vida coisas que se dizem mas não se escrevem, coisas que só se escrevem e outras que nem se escrevem nem se dizem mas apenas se pensam. Seria feliz se me viesses perguntar aquela, que sem me entristecer aos outros, pudesse ser pensada, falada e escrita. É entretanto difícil...(...). Somos uma raça em formação, na qual lutam pela supremacia diversos elementos étnicos. Não pode haver uma literatura original, sem que a raça esteja formada, e já é prodigiosa a nossa inteligência, que consegue ser esse reflexo superior e se faz representativa do espírito latino na América. Ah! A nossa inteligência! É possível atacar, espezinhar, pulverizar de ridículo tudo o que constitui o Brasil, a sua civilização e o esforço dos seus filhos. Esses ataques são em geral feitos por brasileiros.Duas coisas porém ficam acima dos maus conceitos: a beleza da terra e o espírito que a habita, o encanto da natureza e a clara inteligência assimiladora dos homens.
Os comerciantes, os artistas em tournée, os humildes e os notáveis levam daqui a impressão imorredoura de que não há país mais aberto a todas as idéias generosas, mais espiritualmente irônico. Poderíamos acrescentar: nem mais indolente (...)nós começamos a fazer livros socialistas. Esta última corrente arrasta, no mundo, todos quantos se apercebem da angústia dos pobres e do sofrimento dos humildes.Um artista sente mais as dores terrenas que cem homens vulgares, os poetas são como o eco sonoro do verso de Hugo, entre o céu e a terra, para transmitir aos deuses os queixumes dos mortais...
(...) A Arte de hoje é aberta e sujeita a todas as influências do meio e do tempo: para ser a mais bela representação da vida, ela tem de ouvir e guardar todos os gritos, todas as queixas, todas as lamentações do rebanho humano. (...)
O que urge é compreender isso, e é aproveitar a lição dos fatos.(...)pairando sobre nós, a ameaça das epidemias morais, que depauperam o organismo social, e o conduzem à indisciplina, à inconsciência e à escravidão. (...)O problema que tem de ser resolvido, juntamente com esses dois, é o da instrução. E o que dói, o que desespera, é que toda a gente culta do Brasil tem a consciência disto, e que, há mais de um século, esta verdade, anunciada, proclamada, escrita, em todas as tribunas, em todos os livros, em todos os jornais, ainda não achou governo que a servisse em terreno prático.
João — Houve um silêncio. O poeta falava como um filósofo (...)
Bilac - (...) Não há talentos do Norte nem do Sul. Há talentos brasileiros (...).Mas se um moço escritor viesse, nesse dia triste, pedir um conselho à minha tristeza e ao meu desconsolado outono, eu lhe diria apenas: Ama a tua arte sobre todas as coisas e tem a coragem, que eu não tive, de morrer de fome para não prostituir o teu talento!
http://www.revistabula.com/colunas/504/Joao-do-Rio-entrevista-Bilac

Ocultei algumas partes da entrevista para que o texto não fique demasiado longo. Importante observar que 15 anos após essa entrevista que fala de arte, educação, cultura, publicações e identidade latina tivemos a Semana da Arte Moderna em 1922,em São Paulo.
Outro lançamento, em 1929, o livro Raízes do Brasil,um estudo social e antropológico de Sérgio Buarque de Hollanda, sobre as origens étnicas do comportamento social do "indolente e cordial" brasileiro.
As discussões políticas, estéticas e morais continuam atuais, pois por mais que tenhamos escolas hoje nesse país, as crianças, jovens e adultos continuam analfabetos, na leitura e na escrita; analfabetos visuais, porque não lêem os significados do que vêem e assistem nos canais massificados da televisão brasileira; e por fim, analfabetos culturais, pois a educação é imediatista e provém comida, diversão e pouca ou nenhuma importância à arte e à memória patrimonial(lembremos que na guerra a primeira coisa que se faz é saquear os museus, a memória e distribuir os despojos aos vencedores - ler O Príncipe, Maquiavel).

TRADUZIR-SE
Uma parte de mim é todo mundo:outra parte é ninguém: fundo sem fundo.
Uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e solidão.
Uma parte de mim pesa, pondera: outra parte delira.
Uma parte de mim almoça e janta: outra parte se espanta.
Uma parte de mim é permanente: outra parte se sabe de repente.
Uma parte de mim é só vertigem: outra parte, linguagem.
Traduzir uma parte na outra parte – que é uma questão de vida ou morte – será arte?
Ferreira Gullar, 1980.
Sobre a poesia de Ferreira Gullar(...)A impostura da poesia relaciona-se com a ousadia e a liberdade. Seu perigo e sua impureza remetem às funções sociais do poeta moderno – indagador, filósofo, profeta – que,muitas vezes, desorganiza o mosaico ao seu redor. A contrariedade do mundo força-o a ser crítico e a fazer de sua criação poética um modo de resistência. Octavio Paz reconhece o mundo heterogêneo e desafiador no qual vivemos, que nos faz buscar o outro, a fim de repensarmos sobre a identidade individual e a imagem social. “A dispersão da imagem do mundo em fragmentos desconexos resolve-se em uniformidade e, assim, em perda da outridade. [...] A outridade é a percepção de que somos outros sem deixarmos de ser o que somos.” (PAZ, 1982, p. 324)(...)
Cimara Valim de Melo, Nau Literária, RS, 2005.